Dificuldade financeira, ensino médio fraco e desilusão causam desistência em universidades

Evasão é maior na rede privada, na área de exatas, entre homens e entre os mais velhos; bolsistas desistem menos

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Fernanda Ravagnani
São Paulo

Menos de metade das matrículas no ensino superior resulta em diploma no Brasil. A dificuldade financeira em se manter na universidade é o fator mais citado por alunos e especialistas como motivo de desistência, mas pesam também as deficiências de aprendizado trazidas do ensino médio, a falta de orientação acadêmica e a desilusão com o curso.

Os dados de trajetória estudantil do Censo do Ensino Superior 2022, do MEC (Ministério da Educação), dão mais detalhes. A desistência é maior no ensino particular que no público, homens abandonam a formação mais que mulheres, mais velhos desistem mais e a concessão de bolsas de assistência reduz a evasão.

"Para estar na universidade você precisa pagar a passagem de ônibus, se alimentar, ter onde morar, senão não se mantém", diz Manuella Mirella, presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).

Vitoria é uma mulher de pele parda, cabelos pretos e compridos, ela está sentada em um banco com as pernas cruzadas e veste uma camisa preta, uma calça jeans e segura uma mochila preta no colo
Vitoria Regina Batista da Silva, 22, estudante de enfermagem da UPE (Universidade de Pernambuco) recebe R$ 400 de bolsa e usa principalmente para pagar o transporte publico - Leo Caldas/Folhapress

É a situação de Vitória Regina Batista da Silva, 22, que estuda enfermagem na UPE (Universidade de Pernambuco). "A faculdade vai das 8h às 17h, e levo duas horas para me deslocar, pego dois ônibus e um metrô. O meu maior gasto é com passagem", diz ela, que não tem renda familiar e depende de bolsa de R$ 400.

Yasmim Ribeiro, 29, está na quarta tentativa de concluir o curso superior. Nas primeiras duas vezes, a distância entre a universidade e onde mora, em São João de Meriti (RJ), e a impossibilidade de trabalhar enquanto cursava farmácia e engenharia levaram à desistência. Na terceira, a gravidez complicou as coisas.

"No Enem de 2020 entrei de novo em licenciatura em matemática na federal, mas o curso era à noite e não tinha com quem deixar meu filho. Agora retomei, mas está faltando bem pouco para desistir. Tudo é mais difícil para mães", diz ela, que é mãe solo.

Com a expansão do ensino superior e a democratização das vagas públicas com o sistema de cotas e o Sisu, "a universidade passou a receber outro estudante", de acordo com Maria Angélica Minhoto, professora de educação da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenadora de pesquisa do SoU_Ciência, que possui um blog na Folha.

"A educação fica mais cara com estudantes mais carentes, e nem são só os cotistas. O povo empobreceu nos últimos anos. Precisa de restaurante universitário, computador, moradia, assistência à aluna que é mãe", diz ela, citando temas que também estavam entre as reivindicações das greves estudantis de outubro na USP (Universidade de São Paulo) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Para as federais, existe o Pnaes (Plano Nacional de Assistência Estudantil), que distribui bolsas e financia bandejões, estabelecido por decreto de 2010. Plano semelhante para as públicas estaduais, o Pnaest foi criado também em 2010, mas descontinuado.

O censo rastreou a desistência de alunos da rede privada com bolsa do Prouni e mostrou que ela foi muito menor se comparada aos que não tinham bolsa (40% contra 60%, para turmas ingressantes em 2013). O mesmo aconteceu com quem tinha o Fies (49% contra 62% de quem não tinha).

O levantamento analisou ainda a trajetória da primeira turma de beneficiados nas federais após a criação da Lei de Cotas, por dez anos. Os resultados iniciais foram positivos: a desistência foi menor (36%) entre cotistas, seja de escola pública ou PPI (pretos, pardos e indígenas), na comparação com quem não teve reserva de vaga (55%).

"São alunos motivados, que ambicionaram entrar na universidade pública", diz a professora Marta Arretche, do Departamento de Ciência Política da USP. "Há uma diferença de desempenho que nem é muito grande e diminui com o tempo. Esses alunos valorizam muito o diploma e não é raro que haja todo um esforço familiar em torno deles."

A dissertação de mestrado defendida em junho por Luis Pedro Polesi de Castro e orientada por Arretche no departamento destaca outras causas, como a deficiência de aprendizado trazida do ensino médio e o mau desempenho nas notas no primeiro ano de curso.

É esse fator que transforma a área de exatas em campeã da evasão. Física e matemática são as licenciaturas com taxas mais elevadas de desistência (72% e 67%), mostra o censo.

"Eu não tinha preparo", conta Giovana Nogueira Rodrigues, 23, que desistiu do primeiro curso em que entrou. Ao se formar no ensino médio na escola técnica estadual, ela passou no Enem em ciência e tecnologia na Universidade Federal do ABC, orgulho para a família. No primeiro mês, diz, percebeu que não sabia fazer conta de fração.

"O primeiro ano é o grande momento de desistência. O aluno tem dificuldade para acompanhar, porque vem do ensino básico público. O que muitas universidades fazem é um esforço de apoio, em matemática, língua portuguesa", afirma Lucia Teixeira, presidente do Semesp, entidade que representa as mantenedoras de ensino superior.

Só que os professores universitários não têm treinamento pedagógico, e a falta de orientação para alunos com dificuldade é um entrave à superação das deficiências.

A decepção com o curso é mais um fator. "Tive um grande baque entre a expectativa de lidar com a construção de aviões e a realidade de um ciclo básico em engenharia, com matérias que pareciam estar lá só por obrigatoriedade", conta Victor Renzo, 23, que abandonou a engenharia aeronáutica na Escola de Engenharia de São Carlos (USP).

Na segunda tentativa, o curso de ciências moleculares também na USP, o que pesou foi o ambiente acadêmico. "Tem a questão financeira, mas também tenho vontade de construir uma carreira mais cedo e ter uma atividade com mais impacto real."

Atualmente ele cursa engenharia da computação na Poli (Escola Politécnica), da mesma universidade, tentando equilibrar esses dois aspectos.

A alocação de disciplinas mais específicas no início e as atividades de extensão junto à comunidade são iniciativas citadas para responder ao anseio de uma universidade mais prática, tecnológica e voltada ao mercado de trabalho.

O Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), do MEC, recolhe e analisa dados sobre a evasão, mas não é um cálculo simples. O índice é medido a partir da matrícula. Transferências são contabilizadas como dados negativos.

Com as limitações da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), o instituto não faz mais a contagem individual.

O quadro fica mais claro se visto de forma retroativa. Por isso, no último censo, o Inep escolheu analisar a turma que entrou na faculdade em 2013, encontrando, em média, 58% de desistência. Só que naquela época o cenário era outro, sem a disseminação de cursos privados a distância e com as cotas apenas começando a ser colocadas em prática.

"Os indicadores de trajetória acompanham vários cortes até, em geral, o dobro do tempo mínimo de conclusão do curso", segundo a assessoria de comunicação do Inep.

Em termos de desistência, há diferença entre cursos. Os mais disputados, como medicina, têm evasão mais baixa que aqueles com muitas vagas. Uma estatística geral conta apenas parte da história.

"O Inep também está concluindo uma metodologia de tratamento para o cálculo do indicador por instituição de educação superior, que será divulgado ainda em 2023 e possibilitará análises a partir da perspectiva das instituições", afirma a assessoria.

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